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Não sei se foi Nietzsche que escreveu que a autodescrição é uma das maiores pretensões humanas. Acredito nisso, por isso sempre relutei em responder a esta pergunta tão taxativa e constrangedora. Falo disso porque todas as vezes que deparo com uma autodescrição, caio nas reservas e nos limites que um “Eu sou” requer. E, foi tentando fazer isso que percebi, naturalmente, como estas questões são sorrateiramente traiçoeiras. Então, mesmo correndo o risco de me contradizer, comecei a aceitar que sou apenas aquilo que penso que sou – e olhe lá! Aceito as discordâncias, claro, mas não há como fugir de que ninguém entende mais da minha vida do que eu mesmo, apesar de muitas vezes não ter certeza desse argumento.
Nasci Lúcio Flávio, uma junção de nomes próprios que soaria perfeita, caso eu protagonizasse uma novela mexicana. A verdade é que esse nome foi copiado de um cartaz de filme nacional. A tragédia poderia ter sido pior, quase fui batizado como Anselmo!. Opção foi feita e hoje tenho dupla identidade, virei Flávio para família e Lúcio para os amigos. Os mais íntimos me chamam como querem e isso me agrada pela possibilidade de ser um, dois, três ou vários.
Acredito que minha vida como Lúcio Flávio tenha começado cartorialmente em 1980 ou bem depois. Não lembro! Minha primeira lembrança é de 1983. Depois as coisas ficam confusas até 1987 que é a partir de quando consigo lembrar de quase tudo: desenhos do globo, minha lancheira do Jaspion, do lançamento do filme Tubarão de Spielberg, bonecos Star Wars, meu saxofone branco, meus animais de plástico, as imagens da queda do murro de Berlim em 89, meus gibis da Mônica, o cavalo mordendo o olho do meu amigo, meu primeiro LP do Iron Maiden, etc. Da mesma forma, consigo lembrar do rosto da maioria das pessoas que conheci.
Em minha carteira de trabalho constar apenas que trabalhei como técnico em informática, quando na verdade também já fui secretário de imobiliária, professor de cursinho, editor de fanzine e sócio de loja de quadrinhos. Já ganhei prêmio de festival de cinema, redação, desenhos e maquetes.
Já quis ser o Woody Allen. Depois o Caio Fernando Abreu. Antes disso eu quis ser o Saramago, depois o Fernando Pessoa. Também já quis ser o MacGyver e o Steve Jobs. Nada disso deu muito certo e, portanto comecei a aceitar (o óbvio das obviedades!) que eu não tinha cacife para ser ninguém senão eu mesmo. Há quem diga que está dando certo.
Já tomei remédio para diarréia, cólica, sarampo, dor-de-cabeça, insônia, depressão, dor muscular, picada de abelha, dor-de-dente, dor-de-ouvido, frieira, gripe, para problemas do coração e entres outras doenças que imaginei ter. Parei com isso. Não tomo mais remédio para nada e a minha vida vai bem, obrigado. Consulto médicos apenas para fazer exames de sangue regulares. Mas não sei por que estou dizendo isso. Ou talvez eu saiba, por falta do meu remédio para esclerose.
Sou compulsivo por livros, revistas e camisetas. Meu ouvido para música é diversificado e, às vezes, xiiita. Principalmente, com o que não gosto. Também não gosto de ver televisão, mas sou viciado em séries e filmes.
Paro por aqui, concluindo com as palavras de Clarice Lispector, “sou mais aquilo quem em mim não é”. “Não sei viver de mentiras. Não sei voar de pés no chão Sou sempre eu mesma (o), mas com certeza não serei a(o) mesma(o) pra sempre”. Por isso, eu posso ser divertido e interessante para alguns e arrogante e pretencioso para outros. Não me importo com os últimos! Hoje minha única encucação é tentar não esquecer a simplicidade das coisas a medida que divago sobre como eternidade que nos cerca é assustadoramente incompreensível. No mais, eu sou uma pergunta !